"Ora afinal a vida é um bruto romance e nós vivemos folhetins sem o saber." - Sweet Home, Carlos Drummond de Andrade
Sobre o blog:
Narração dos fatos da vida de um universitário, aspirante a escritor de prosa e verso. Nesse passeio, o cotidiano, a amizade, a cidade natal, o amor e temas metafísicos ganham um enfoque literário sob a visão de quem escreve.
Sobre mim:
Nome: João Francisco Amorim Enomoto Nascimento: 20/10/1984 Idade: 21 anos Estuda: Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP - Curso Bacharelado em Ciências da Computação Família: Sandra, mamãe; Lumi, irmã; Pedro, irmão caçula. Inspirações literárias: Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, João Guimarães Rosa, José Saramago, George Orwell, Clarice Lispector, Machado de Assis, Pablo Neruda, Italo Calvino. Ouve: MPB, Bossa Nova, Samba. Gosta: de todos os amigos que tem, ouvir música, sair com os amigos, filosofar, escrever, ler livros de computacao e literatura em geral. Não gosta: gente egoísta, egocêntrica ou limitada na maneira de pensar. Lendo: Um livro aqui, outro acolá.
Da terra surgiu o barro Que a vida se propôs a esculpir Mil dedos de história Moldaram aquele pedaço Para mostrar ao mundo um vaso Um vaso raro no mundo O vaso e a sua história Um dia, o vaso fará a arte É a metalinguagem Que as páginas contam
Postado por Little John às 22:44.
quinta-feira, março 30, 2006
Memórias
V
No mundo de Oz O leão quer a coragem, O espantalho quer um cérebro, O homem de lata quer um coração E Dorothy quer achar o caminho de volta para casa. Eu quero tanta coisa E quero o que eles não têm.
Postado por Little John às 08:26.
segunda-feira, março 27, 2006
Memórias
IV
Possuo um coração leve, Muito leve em seu pesar: Se dão um sopro bem breve Se desata logo a voar
Postado por Little John às 23:01.
domingo, março 26, 2006
Memórias
II
Eu lembro daquele instante em que acordei: estava tudo escuro e eu não lembrava do momento exato em que havia caído no sono. Achei a cama dura demais e percebi em seguida que havia dormido no chão. Quando me dei conta desse fato, parei para observar onde exatamente eu estava e a realidade daquele quarto num primeiro momento me assustou, era apenas um pequeno espaço cercado por quatro paredes, as paredes todas de cimento e úmidas de uma chuva recente que atravessara a única janela daquele cubo onde eu passara a noite. Na parede oposta a pequena janela, que ficava na parte mais alta da parede e só permitia que a luz da lua entrasse por ela, havia uma pesada porta de metal, já meio enferrujada, com várias coisas escritas, marcações de dias ou meses de alguém que estivera por ali anteriormente. Sob o meu corpo, um pano que desempenhava o papel de um lençol ou cobertor, tudo depende de onde você o coloca. A princípio não entendi muito bem aquela situação.
Passados alguns instantes de adaptação àquele lugar estranho e místico, levantei-me e tentei entender como havia parado naquele lugar. Não lembrava de nada da noite anterior e nenhuma marca me dava uma pista do que acontecera. Parei então para apreciar a vista daquela janela com grades de ferro no alto do meu cárcere. Bem verdade que chamar de janela aquela fresta na parede é muita pretenção, mas ao menos tinha uma vista para o céu e acredito que isso é o mínimo para poder atribuir o nome de janela a algo. A luz da lua entrava diretamente onde eu me encontrava e eu retribuia de mesma maneira o meu olhar para a lua, embora eu não tivesse luz suficiente para a lua me enxergar lá de cima. Nuvens passeavam pelo céu ao gosto dos ventos, levavam chuvas para outros lugares. Uma umidade formava um espectro de gotas na parede junto a janela, uma pequena poça logo abaixo confirmava meu pensamento, "choveu".
O tempo que se seguiu foi uma agonia em pequena escala: sentei na escuridão da minha prisão e pensei qual o crime que eu haveria cometido para merecer um lugar ali. Não é preciso ir muito longe para eu achar uma justificativa e de súbito todos os meus crimes, um a um, passavam pelos meus olhos como uma sessão exclusiva de cinema para mim. Eu olhava todos os meus crimes com um pesar e com uma saudade. Deve ser natural do bandido sentir saudades da sua liberdade de poder ser criminoso e talvez fora isso que impeliu algumas lágrimas a despencarem do meu rosto. Ao terminar aquele filme da minha vida, pensei em todos os outros crimes que devo ter cometido e não reconheci na minha história. Não há arrependimento sem culpa, isso me salvou naquela hora mas não me salvou de me sentir um monstro inescrupuloso.
Pensei "olha esses erros, olha esses crimes, olha a sua interferência no mundo, a sua interação com ele". Fiquei pesaroso e arrependido. Depois imaginei quantas vezes pedi perdão e fui perdoado, não foram poucas. Se é justo errarmos, é justo haver o espaço para a palavra perdão, porque não nascemos com a obrigação de agirmos sempre corretamente. Viver implica em errar, só não se erra quando se está em um momento como aquele, quando se está sozinho com um pano no chão, marcas de água na parede e a lua como única testemunha das suas próprias verdades. Então todas as culpas do mundo perderam o seu peso, ante o poder da palavra perdão. O problema, pensei, não é estarmos errados, mas sabermos de nossos erros e darmos espaço para um sopro da boca que invoque o peso da culpa, para nunca mais.
Olhei aquele espaço novamente e acreditei estar louco. Como que eu estaria ali se então não cometi nenhum crime, se me arrependi de meus erros? A resposta era essa: eu não estava preso, estava internado. Então veio um sentimento de raiva seguido de socos na parede, um em cada uma, concluindo com o soco na porta. Minha mão doía e muito mais minha cabeça. Comecei a gritar, a esbravejar contra alguma coisa que eu não sabia exatamente o que haveria de ser. Quando me acalmei um pouco, comecei a conversar comigo mesmo. Era um diálogo entre eu e eu mesmo, era uma pergunta e uma resposta, certas como a dureza daquelas paredes, daquela porta. A cada pergunta eu dava um passo mais próximo da lucidez, revisitei todas as minhas certezas, todas as minhas virtudes. Segurei com as duas mãos a minha cabeça e continuava a dar uma resposta, que a cada questão ficava cada vez maior. Quando respondi a principal perguntava me senti mais lúcido. As paredes voltaram a ter a mesma cor, a mesma umidade e ainda havia um pano no chão e a luz da lua contra a porta.
Bateu uma saudade. Ai eu olhei para o meu passado e contei as pessoas que eu havia esquecido cerimoniosamente, como quem reza um terço. Dizia nomes completos, lembrava de rostos, recordava cenas avulsas, reproduzia pequenos trechos de falas, sentia gostos esquecidos e cheiros de muito tempo. Tudo isso me fez sentir como quem viveu por muito tempo e de fato eu vivera. Recontei nos dedos os anos que se passaram, em cada dedo uma lembrança e em cada lembrança a memória. Meu passado era uma cidade perdida no tempo, queimada e pilhada, que hoje é a cinza das necessidades do presente, o qual por sua vez é um monte de arquitetos e engenheiros que acreditam em breve erguer uma estátua eterna do futuro. Não existe eternidade, lembrei. Então qual é a projeção que se faz para daqui a alguns anos? O que carrega o nome de futuro? O passado era a resposta. O passado é a resposta das perguntas a serem feitas. Foi quando me dei conta de que na minha cabeça haviam mais respostas do que perguntas, por mais irracional que isso possa parecer.
Fiquei sentado perto a uma das paredes do meu cárcere. Sentei e esperei por algo que não possui nome, que não é material, que não se conhece. Olhei para a porta, a luz contra a porta. Então eu entendi o porquê de eu estar naquele lugar estranho. O nome daquele espaço cubicular era exílio. Exílio das coisas do mundo e de mim mesmo, o lugar na distância para eu pensar em tudo que se passou. Às vezes é preciso encontrar um lugar inóspito no mundo onde uma projeção de si mesmo possa olhar seu próprio comportamento e encontrar uma resposta para os tempos presentes. Há quem o faça de uma maneira mais sutil, há quem nunca o faça. Essa foi a minha maneira de encontrar minha resposta. Depois de me dar conta deste fato, de que eu era o meu próprio capitor, abri a porta daquele espaço e sai. Sai daquele espaço apertado, com quatro paredes, marca de umidade, uma fresta por onde passava a luz da lua, um pano onde eu passara não se sabe quanto tempo a dormir, e uma porta de ferro pesada, com marcas de tempo passado, mas ainda assim sempre aberta.